Coisinha do Pai

Quem já leu algo aqui nesse blog mal nutrido, sabe que hoje é aniversário de morte do meu pai. E sinto uma saudade arrebatadora dele, como pai e melhor amigo. Ele era um homem incrível ─ sei que é muito abrangente, mas é o que temos para hoje. Também era apaixonante e é esse o adjetivo que vou explicar melhor.

Por duas vezes me apaixonei, aprendi a amar e respeitar meu pai. Como primeira filha tive sua atenção exclusiva nos primeiros anos. Ele era meu cúmplice: sempre tomava meu partido quando minha mãe relatava algum malfeito; me dava comida escondido ─ mesmo depois que eu já havia escovado os dentes ─; quando me deixava na aula ficava na mesma posição na porta da escolinha, só para eu me sentir tranquila e segura quando entrava e saia do colégio novo.

Cantava para eu dormir “ô coisinha tão bonitinha do pai” (o amor é cego, como disse algum sábio). E quando eu estava brava com minha mãe ele recitava: “Meu cavalo e minha mulher morreram no mesmo dia, do cavalo tive pena, da mulher tive alegria, cavalo bom é difícil, mulher eu acho todo dia” ─ sei que é misógino, cruel e tal, mas me acabava de rir vendo minha mãe revirando os olhos de tédio com esse repente.

Em algum momento da minha infância, que não sei precisar, ele desapareceu. Coisas da vida de adulto que só competem a eles e que não tinha maturidade para lidar na época e que não me interessam agora.

Ficamos eu e minha mãe sozinhas. Passamos alguns apertos: perdemos nossa casa, nossas coisas… Minha mãe precisou trabalhar e eu aprendi a me adaptar. Tivemos apoio das famílias, mas esse vazio ficou.

O tempo passou.

Um dia apareceu esse moço, beijou minha mãe na boca. Como, do nada, aparece esse homem? ─ Larga ela moço!

Memória é um troço confuso quando envolve emoções. Não sei vocês, mas a cronologia se perde em minha mente. Não sei o quanto demorou, só sei que foi assim: me apaixonei e amei esse moço pela segunda vez.

Há onze anos ele se foi de novo, dessa vez para sempre, mas isso é assunto para outro dia.


7 Dias de Saudade

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso…

— Mario Quintana

Quando penso em um exemplo de mulher forte, lembro-me da minha avó.
Não apenas porque teve e criou 8 filhos — “e nenhum deu pra coisa ruim”, como dizia com orgulho —, ou porque enterrou o marido, um filho e um neto, dentre tantos entes queridos que passaram por sua vida. Mas porque me encantava com sua capacidade de seguir em frente, por sorrir, mesmo com o peito apertado de saudade, dor e cansaço. E com seu carisma, cativava mais e mais pessoas por toda sua trajetória…
E que linda trajetória!
Os médicos diziam que seu coração era crescido… também pudera, com tanto amor para dar, tinha que ser muito grande mesmo.
Ela era mãe, irmã, amiga, tia e avó de muitos — e nem adiantava ter ciúmes —, fosse de sangue ou não, todos eram sua família. Por isso tanta gente rezou e chorou sua passagem.
Afinal, como disse meu filho, seu bisneto: “Morreu a líder.”


O tempo

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Sempre me fascinou viagem no tempo. Sempre achei incrível a ideia de visualizar o futuro e revisitar o passado.
Filmes. Livros.
Um Conto de Natal, de Charles Dickens; A Máquina do Tempo, de H.G. Wells; para citar alguns.
Tudo relacionado ao tema me encanta nas possibilidades e implicações.
E muitos pensam a respeito, sem nem mesmo se dar conta:

Deveria ter feito isso.
Como seria se tivesse feito aquilo?
E se…

Esse ano completo 39 anos e tenho pensado muito nos meus sonhos não realizados. Não estou reclamando. Apenas constatando e revisitando o passado da forma que tenho de viagem no tempo: recordando.

Mudaria alguma coisa?
Certamente.
O que?
Prestaria mais atenção nos sinais que a vida dá.

Temos tantas possibilidades que não enxergamos e, quando jovens, achamos que o tempo é nosso aliado.
Mas não é.
Ele trabalha contra.
É cruel.
Cobra seu preço.
E sempre ganha.

Bom, não serei cruel com ele também: o tempo dá perspectiva, ajuda a pensar, suaviza dores.
Com o tempo mudamos de ideias, evoluímos, ficamos menos imediatistas, mais pacientes (nem todos!).
Acredito que, principalmente, porque não adianta espernear, uma hora aprendemos que o tempo é objetivo e contínuo, com as mesmas 24h todo dia. E subjetivo quando faz 10 minutos virarem 10 anos em 10 segundos nessa percepção única que temos da vida.

E hoje completam 10 anos sem meu pai.
Parece que foi ontem.
Clichê, mas a dor da saudade, ainda, parece que foi ontem.
E se voltasse no tempo? O que faria? Caso tivesse 10 minutos com ele antes da fatídica hora? Será que saberia o que dizer? Será que saberia o que sei hoje? Será que ajudaria?
Lembro as últimas palavras que disse a ele pessoalmente: “Te amo muito”.
Uma semana depois choraria sua ausência.

E se?

Não podemos voltar no tempo, infelizmente.
Sempre vai ficar a dúvida.
E a saudade.
Sempre existirão espaços vazios que deveriam ser preenchidos por ele.
E a angústia.
Sempre vai ecoar a última frase que eu disse: “Te amo muito”.
E, então, a paz.

Existe um conselho que ouso dar a todas as pessoas:
Diga que ama sempre que tiver vontade, porque foi essa frase que me ajudou, e ajuda, a seguir nesse tempo sem ele.

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Fica em paz.


Fanatismo by Florbela Espanca

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa…
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!…”

(Livro de Soror Saudade, 1923)

Florbela Espanca


Ausência…

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade, in ‘O Corpo’